Ração para animais
Repensando a escultura e a instalação no actual
Ao longo de dois anos, pode ler-se na “memória descritiva”, o processo criativo de “Ração para animais” foi amadurecendo através de intermitentes mas constantes permutas de sentido criativo entre Bruno Côrte, Duarte Encarnação e Susana Figueira. “Desde o início” tinha ficado estabelecido, dizem-no os seus autores, “que o fio condutor de todo o processo deveria incidir principalmente nas questões pessoais relacionadas com o corpo como entidade de criação”, que se reconhece e complementa no estabelecimento de “analogias com a natureza, comportamento, mutação e mecânica do entendimento pessoal face ao estado criativo”. Assim, o trabalho do corpo, como o do tridimensional em geral, enquanto imagem de uma realidade sempre ausente ainda que presentificada, surge aqui como essencial, se queremos superar o luto de e pelas presenças ausentes ou, e ainda mais importante, o luto pela identidade que apenas se adivinha no trabalho da imagem enquanto despoletadora da comunicação e criadora de novos sentidos. Suscita-se, assim, em “Ração para animais”, uma comunicação aberta, atenta e desperta à convivência de uma multiplicidade de idiossincrasias, de subjectividades, que são transmitidas ao fruidor através de actividades retóricas, ainda que com carácter dialógico, questionador e problematizador.
A exposição, que se estende por quatro espaços contíguos, permite desenvolver a comunicação por três ambientes diferenciados e particulares. Nas Salas 1 e 2 (“Senhores de Beijacu”), Susana Figueira criou, na primeira, uma instalação sonora denominada “ Senhor de chupaflatos”, personagem escultórica realizada com materiais leves, tão irreal quanto real é o som editado com recurso a várias naturezas de flatulência, e que nos remete, portanto, para uma realidade/irrealidade cuja existência se concretiza apenas enquanto pano de fundo. Este é, nesta exposição, o primeiro exemplo de realidade fantasmática, de realidade simultaneamente presente e ausente, recordada e esquecida, continuamente prestes a encolher-se e expandir-se na nossa e em outras vivências, e portadora, prenhe, de memórias passadas, presentes, futuras. Une, devolvendo-nos, o eterno com o fugaz, o permanente com o efémero, o restrito com o incomensurável, permitindo-nos “conciliar” todas as presenças e ausências. Aprofundando em nós esse sentimento de desprazer, remete-nos para o (re)conhecimento da nossa finitude e incompletude que todo o escatológico tão bem resume enquanto repositório de fins últimos e das “ultimidades”, os valores supremos e os últimos dos valores: o refugo, o lixo e a imundice. A sensação de angústia que resulta da compreensão, apenas entrevista, da nossa própria dimensão, e da compreensão da nossa existência, também ela, reduzida à natureza do “rastro”, de falsa presença, que se entrecruza com as coisas ditas, com as coisas não ditas ou, mesmo, com as inauditas. Nesta mesma linha, ainda que com um carácter formalmente diverso, na Sala 2, situa-se “ ‘A burguesinha’ peça escultórica (150 X 140 X 140 cm) em materiais têxteis revestida de pequenos personagens grotescos acompanhada por dois porcos de borracha sobre uma carpete vermelha que cobre integralmente o chão”. Com caráctersimbólico, fortemente metafórico, um significado e uma natureza muito próprios, estas criações transformam-se em objecto de sedução/anti-sedução pela sua natureza barroca, e, consequentemente, de anti-desejo. Referindo-se a si próprias, oferecendo-se como tema, são, por si sós, peças que, mais do que um imediato ver, olhar, apetece logo rejeitar para melhor fruir.
Duarte Encarnação ocupa a Sala 3 (“Laboratório de Habitáculos”) “com propostas que reflectem vários aspectos relacionados com o binómio escultura/acção” que permite e incentiva a interactividade com o fruidor, enquanto escultura (pró)vocação. “Para materializar estas relações foi, sobre o chão azul, executada a ‘mesa dos projectos’, de projectos/ideias (426 X 238 X 75 cm), com quatro zonas independentes, e inter- relacionadas”. Em cada zona são-nos apresentas “4 maquetas de projectos de intervenção e interacção: ‘KMKZ’(kamikaze), ‘homemdolixo’, ‘câmara do vento’, ‘360o em rotação’”. Ainda neste contexto, de viagem pela utopia, está instalado um painel que exibe no seu movimento rotativo um desenho “tèchne” (600 X 100 cm) e uma peça escultórica (um “AstroZarco” – “crontramonumento panóptico” - ser seduzido por brincadeiras perigosas e capaz de saltos suicidas - 180 X 70 X 40 cm), realizada com materiais leves, adereços
Idalina Sardinha
corporais e incorporação de monitor com vídeo (um olhar “Big Brother” no ecrã LCD). Podemos, pois, ver esta criação como resultante da “desconstrução”, tão presente na arte, toda ela, das últimas duas décadas “(...) como um pensamento fielmente atento ao outro em ‘nós’, ao outro que nos inventa, ao outro que inventa a identidade em geral – a si, à língua, à cultura, à proveniência (...)”^^[1] <#_ftn1>. A desconstrução que “(...) longe de ser uma ameaçadora demolição destrutiva é, antes, a condição, a chance da sua in-finita construção”^^[2] <#_ftn2>. Assim, o trabalho dos silêncios discursivos é, aqui, essencial, se queremos superar o luto da criação. De uma criação atenta e desperta a formas de relacionamento superficiais, diluídas por entre territórios espacio-temporais, em que as coordenadas da afectividade se tornarão cada vez mais ténues, visto que, aqui, o corpo assume personalidades múltiplas, descentradas, dispersas num tempo e espaço igualmente múltiplos.
Na sala 4 (“Chlorophyll Room”), ocupada por Bruno Côrte, foi construída uma estufa com as dimensões aproximadas de 700 X 400 X 220 cm na qual foram dispostas diversas plantas – 67 árvores de fruto – “mangueiros" (“Mangifera indica L.”), “com o objectivo do fruidor ter a percepção do crescimento das mesmas durante o espaço temporal da exposição.
A proposta de Bruno Côrte, bem presente nesta sua instalação, parece, num primeiro momento, defender um aparente saneamento social e ecológico que assume formas próximas de uma “Arte Ecológica”, fundada no conceptual e no vivencial, lutando, aparentemente, pela defesa intransigente de um ideal de reequilíbrio natural. Mais clara, parece-nos ser, no entanto, a sua recusa em aceitar a imemorialidade do outro, defendido, no seu “crescimento”, por redomas que sempre o fazem chegar a nós “perdido”, disperso em multifacetadas imagens, vozes e entendimentos, inscritos e encriptados na matriz primordial da nossa memória “única”, fazendo-nos regressar da viagem aos e dos confins do tempo de identificação introspectiva sempre prisioneiros da nossa própria imagem que se replica na imagem que aparentemente buscamos do e no outro. Talvez tentando alcançar a unidade das memórias, ao público é dada a oportunidade de “participar nas diferentes etapas de jardinagem e na utilização de ferramentas associadas a esta actividade, que irão ampliar o corpo e a personalidade dos fruidores”.
Dispostas na parede, duas séries de fotografias a cores (“Gloves Serie” e “Landscapes Serie”) evidenciam uma pesquisa individual baseada no acto de construção/desconstrução da paisagem. Incide-se, pois, aqui, em “montagens conceptuais” que procuram a valorização de uma práxis estética, enquanto, aparentemente, análise filosófica de uma verdadeira política social de saneamento do nosso modo de vida, de detritos ideológicos, teóricos e tecnológicos, das tecnologias e tecnocracias avançadas com que somos forçados a coabitar. Distantes ficam, em parte, as preocupações de ordem formal e estética, que nos últimos trinta anos vêm imprimindo um grande lirismo às criações desenvolvidas no terreno por todos os criadores que, sendo os herdeiros mais ou menos legítimos das práticas estéticas e criativas dos criadores que se inserem, “grosso modo”, nas vertentes mais ecológicas da “Land Art” e da “Arte Povera”, aparentam preocupações ecológicas e cosmológicas, acentuando e aprofundando a sua força metafórica ao ganharem uma natureza edificativa (construtora e/ou desconstrutora), anulando, assim, o seu carácter de proposições efémeras, a sua natureza preponderantemente conceptual. Este aspecto surge particularmente acentuado nos desenho de duas células vegetais ampliadas e que parecem proceder a um mapeamento de toda a imensidão e ordenamento que caracteriza um princípio primordial, enquanto cosmo verdadeiramente infinito (“‘African Violet Cell’, grafite e tinta da china s/impressão em papel, 130 x 90 cm e ‘Limonium Tissue Cell, Sinuatum Mill’, grafite e tinta da china s/impressão em papel, 130 x 90 cm).
No acto inaugural foi realizada uma acção por parte dos três artistas. Munidos de acessórios relacionados com o seu campo criativo pessoal, num contexto “nonsense”, deambularam pelos quatro espaços, corporizando de algum modo as suas preocupações por meio de uma manifestação lúdico–espontânea. À entrada, foram facultados aos visitantes, à sua escolha, capacetes, botas de croché, luvas. Uma opção que proporcionou uma espécie de endereçamento pela sinédoque, encaminhando o fruidor pela realidade intuitivamente escolhida. Ao se pretender multiplicar as presenças, concretizando a sua virtualidade na cena artística, presentificou-se sobretudo as ausências, que, fortemente metafóricas, nos conduzem pelos domínios do fantástico, do surreal, permitindo-nos proceder ao desenvolvimento de estratégias e trabalhar as elipses, os silêncios discursivos, estabelecendo um diálogo que, a um nível plástico e simultaneamente conceptual, passam a encenar um diálogo eminentemente virtual. “Ração para animais” reintroduz, pois, um sublime reactualizado por uma compreensão menos estática do mundo, em que a subjectividade e a incerteza do olhar e compreensão humanas são reassumidas de novo descomplexadamente, e entendidas como uma espiral em movimento, que resulta do facto de constantemente querermos ultrapassar a nossa própria natureza, assumindo, e ajudando a estruturar e actualizar os “shifters” ou “linguagens de transição”, sem os quais corremos o risco de criar uma nova Babel e sentirmos, um certo dia, que acordámos num mundo em que cada um de nós “fala” apenas consigo próprio, desfrutando plenamente da sua “mania”, da sua loucura privada.
Professora associada na Universidade da Madeira (tendo realizado provas de doutoramento, pós-doutoramento e agregação em estudos de arte - história e ciências da arte).
[1] Derrida, Jacques - /O outro cabo/. Coimbra: Reitoria da Universidade de Coimbra (A Mar Arte), 1995, p.19.
[2] Derrida, Jacques - /O outro cabo/. Coimbra: Reitoria da Universidade de Coimbra (A Mar Arte), 1995, pp. 16 e 17.