Rute Pereira, Sónia Carvalho, Landscape room, Teatro Municipal Baltazar Dias|2002
Landscape Room
Rute Pereira(1)
Abriram-se as portas para uma planície de verdes imaginários com vontade de respirar a Natureza que as criou. Somente o espaço livre onde nasceram transforma-as num sonho plantado em quadrados enraizados no tempo que alguém inventou para uma realidade que talvez só exista aos olhos dos amantes da alma... E então abrem-se formas no solo, cuja matéria é terra viva de prazeres desenhados no seu corpo, que se fecha em asas de pássaro e canta a voz do desejo liberto.
Linhas suaves transformam-se em evidências colhidas pelos olhos e fechadas em invólucros que se multiplicam a cada passo dado, os lugares permanecem fixos à poesia das cores e as folhas caem como orvalho em madrugada de Outono sobre o calor da terra. Surgem aqui e ali ramificações, folhagens, troncos, pedras, que se confundem num cenário de efémeras Naturezas, que cobrem o todo envolvente numa poesia crescente de ritmos vindos de um "sei lá" tornado vivo, à luz de uma calma ondulante e da seiva tépida em germinar de calores térreos.
Suavizam-se formas, intensificam-se os tons, ora tenros verdes ora maduros ocres-vermelhos que se alimentam da terra enquanto adormecida pelo canto de pássaros, viajantes de outras planícies, trazem o segredo das sementes e o mistério da eternidade.
Anunciam-se esboços de pequenos corpos metamorfoseados por Naturezas singulares, envolventes em levezas, que respiram a essência dos lugares e o encanto da matéria mãe. Soam-se prazeres, sentires, cheios, sons... puro alimento da criação plena de espaços fecundos.
Sónia Carvalho(2)
Vagueia. Ele anda por ali. Senta-se no chão molhado. As árvores são papéis azuis, os pássaros de frutos verdes e doces. Ele olha para o céu e vê-se, reflecte-se e ri. Ela chama por ele numa voz mouca e dorida. Chama-o e doí-lhe o corpo, a alma, o coração. São as folhas, os ventos, as águas, a terra, o húmus, as sementes, os caules, o estrume, os fósseis, a luz, o desespero, as ideias, a amargura, o tesouro, os ais, o sangue, o mar, a mensagem que chamam por ele. A natureza agarra-o com muita e toda a força. Faces rosadas, sujas, raspadas de sangue. Vai saindo, sai tudo de lá de dentro. O espírito há tanto tempo seco, Sol, Mundo imundo. Um arco-íris de loucuras. Rasgam-se flores e insanidade. E ela.
As árvores de braços caídos de onde se vê flutuarem folhas que vão para o céu vermelho, que voam e rodopiam infinitas vezes. Estão mortas, as pobres folhas. Estão espalhadas no chão, uma mixórdia destinada arduamente a cobrir aquela imensidão negra e fria, a escondê-lo de tanta fealdade. E quando morrem, quando morrem outra vez, outras muitas mais vezes, flutuam. Elas tocam-nos subtilmente e nós florescemos sem vezes. O tempo passa sempre por aqui, lentamente, sem pedir nenhum tipo de permissão: deixámos de ser um reflexo insípido da morte, nascem-nos flores nos cabelos, pelas mãos, escorrendo por entre as pernas e os dedos dos pés. Saltam-nos fontes de mel, águas transparentes e frescas, cheias de vida que nos cultivam e que esperam dar frutos. Elas pegam em nós e levam-nos a flutuar.
E rimos muito, rimos muito que até nos dói e permanecemos lá.
Vejo um homem. Um homem que chega e que se senta só na floresta e ri como um louco. Sente-se a rir e ouve-se ao longe, no seu espaço feito de espinhos secos que lhe fere a pele, alguém, que o chama para criar. Ele levanta-se. Dos lábios sai-lhe uma luz condenada a caminhar à sua frente e a iluminá-lo constantemente. Na vida, entra-lhe a floresta pelo corpo fértil, rasgando-lhe o ser e há sangue que lhe brota de dentro e pinta- o de novo, nada mais é real: é tudo espanto e fogo, languidez e água corrente.
E ele cria, ali, como se fosse sempre a última ou a primeira vez, como se o desespero de tudo ficar lá dentro lhe consumisse a carne, à força de vê-la nascer entre as suas mãos, à força de ser; ele também, levado pelas folhas que flutuam.
E ela nasce do peso de mais um sonho. A voz que o chamava e o fustigava cessa. Agora, ele pode seguir livre e leve depois de deixá-la sair, ele é liberto quando ela está livre. Mas ele sabe que quando tornar a se sentar e voltar as costas, as árvores, as folhas, a luz que entra e o sussurro que o atormenta voltarão a chamá-lo até fazê-la nascer outra vez. É uma nascente incessante. É um parto solitário. Será sempre assim, repetidamente, a criar. É tudo. E ele vai.
(1) Formação em Pintura, Universidade da Madeira
rutefap@netmadeira.com
(2) Formação em Gestão, Universidade da Madeira
soniazenite@hotmail.com