Paisagem em laboratório
Quando entramos no espaço da exposição do Laboratório de Química Analítica deixamos de estar na sala para sermos levados para o ar livre, a paisagem é a base de pesquisa da exposição. Percorremos os caminhos que o artista Bruno Côrte fez na preparação da exposição Paisagem em laboratório onde o espaço não fica contido à sala, expande-se. “A imensidão está em nós. Está presa a uma espécie de expansão que a vida refreia, que a prudência detém, mas que volta de novo na solidão. Quando estamos imóveis, estamos além; sonhamos num mundo imenso. A imensidão é o movimento do homem imóvel. A imensidão é uma das características dinásticas do devaneio tranquilo.” (Gaston Bachelard, in: A Poética do Espaço). Dada a expansão da temporalidade em que a exposição ocorre, é-nos facilitada a síntese a partir da clarividência utilizada pelo Bruno Côrte, instalação com objectos naturais, o que nos vai permitir sentir essa aproximação.
A exposição Paisagem em laboratório começou a ser pensada nas visitas que o artista fez ao Jardim Botânico, na observação e posterior recolha de material para a execução dos seus objetos. A experiência da intrusão na natureza é a sua forma de fazer arte, onde o encontro e a descoberta da paisagem são processados de forma natural e integrada como se reflete na instalação Atelier, onde integra uma série de desenhos, técnica mista sobre papel de seda. Bruno Côrte passou para o papel esses objetos, por vezes sombras, quase um jardim de papel no interior de uma estufa, que resultam de toda a experiência e observação no jardim. Os padrões criados confundem-se com plantas, folhas e flores, por vezes simplesmente em botão, outras em fase de floração que preenchem quase por completo o suporte utilizado. Lembrando Claude Monet, “Todos discutem a minha arte e fingem compreender, como se fosse necessário compreendê-la.” Os gestos e movimentos, quase presentes, de colocar as folhas de papel suspensas, assemelha-se um pouco ao trabalho de um jardineiro ou de um pintor que realiza diversos registos de observação para mais tarde utilizá-los.
O desenho Roseiral aparece suspenso a dar continuidade a esse desígnio, surge a partir das rosas de vermelho intenso que o artista encontrou no roseiral do Jardim Botânico. A velatura do vidro da Hotte e o seu resguardo dão ao desenho a aparência da perpetuação das rosas, em conservação, dentro de uma campânula. O propósito de Bruno Côrte é a observação atenta e o seu projeto é aliar-se, fundir-se e compreender o que a natureza oferece em cada experiência para se apoderar e criar. Poderá ser adjectivado de walking artist como Hamish Fulton que considera o caminhar como uma forma de arte.
A série Paisagem, conjunto de 24 fotografias, foram captadas através de uma webcam onde quase diariamente o artista recolheu dezenas de imagens, acumulando e apoderando-se da mesma paisagem em vários momentos diferentes. A narrativa deste trabalho constrói-se ao longo de um ano. Não é o local fotografado que importa, mas sim a cativação de um tempo, um ano, as estações. O artista utiliza uma metodologia de síntese, mas exclusiva, onde o tempo é transportado para um espaço físico que é aprendido pelos visitantes.
Esta transposição da paisagem para o Laboratório de Química Analítica pode parecer-nos improvável, mas se pensarmos no Jardim Botânico como parte integrante do museu e laboratório para Bruno Côrte, já não o é. Como nos diz o artista, “os dias passados no Jardim Botânico a recolher plantas, quase em residência permanente, foram a base do processo de todos os trabalhos.” Como se pode ver na instalação 54 Raízes, onde existe uma ligação directa com os frascos de laboratório agora repletos de raízes em vez de substancias químicas como outrora usual. O que caracteriza esta instalação é o facto dela se constituir como possibilidade de representação de convergência entre tempos e finalidades distintas.
Esta exposição coloca-nos perante situações de permanentes contágios, Bruno Côrte tem consistência entre o espaço real e irreal, a presença física dum espaço que muitas vezes evoca a transformação desse espaço durante um determinado tipo de acontecimento, como Cézanne tem sobre a natureza. “A arte é uma harmonia paralela à natureza. O que podemos pensar dos imbecis que dizem: o pintor é sempre inferior à natureza? É paralelo a ela.” (...) A paisagem reflecte-se, humaniza-se, pensa-se em mim. Eu objectivo-a, projecto-a, fixo-a na minha tela. (…) A minha tela, a paisagem, ambos exteriores a mim, mas uma caótica, fugidia, confusa, sem vida lógica, fora de toda a razão; a outra permanente, sensível, categorizada, a participar na modalidade, no drama das ideias, na sua individualidade” (Joaquim Gasquet, in: O que ele me disse). As peças Objetos e Quase objetos estão inseridos nessa linha de pensamento. Estes objetos agora artísticos que com a sua transformação apresentam uma maior definição, realçando todos os pormenores que não se observavam quando eram simples plantas.
O trabalho de Bruno Côrte lida com o reposicionamento da identidade e da reavaliação da consciência clara e emocional do seu percurso artístico. A passagem da realidade para a realidade da interacção entre interior e exterior, do público para o privado e da paisagem fragmentada ao esculpir pedaços da Natureza, são o resultado do seu processo.
“A natureza recriada à nossa imagem e semelhança: nós dentro dela e ela polarizadora dos nossos sentimentos estéticos.” (Alberto Carneiro, in: Notas para Um Manifesto de Arte Ecológica).
Sofia Marçal
Curadora da exposição