Deambulações pela fragilidade do mundo, Por entre flores e pedras, museu geológico|2017


No Museu Geológico de Lisboa podemos encontrar, recolhidos e organizados, os efeitos do lento labor do tempo nas rochas e nos seres fossilizados, encontrar também as marcas da atividade humana no seu confronto com a Terra, sejam elas fruto de recentes diligências para conhecê-la ou sejam fragmentários vestígios de quotidianos remotos. Sala a sala, vitrine a vitrine, prateleira a prateleira, a narrativa que oferece o percurso expositivo confere um caráter sistemático à diversidade do mundo. A mostra Por entre flores e pedras dialoga com este percurso introduzindo nele marcas de vivências pessoais inevitavelmente inscritas no tempo breve, do acontecimento, da efemeridade.


Reúne trabalhos de Bruno Côrte e de Martinho Mendes, que há muito vêm tecendo as suas próprias narrativas acerca da realidade, em demandas paralelas que, de quando em vez, se cruzam. Ambos têm formação de base em pintura, com todas as implicações que essa prática propicia na construção do olhar, e são dados a deambulações pela natureza ou, mais precisamente, com a natureza. Observam, colhem, organizam elementos e depois dão a ver a memória decantada desses encontros. Cruzam uma vertente documental, que inclui recolhas e imagens de arquivo, com a elaboração e apresentação desses dados através de estratégias próprias das artes, como a criação de objetos plásticos e de dispositivos de leitura. Recorrem, pois, a metodologias que, sem sair do paradigma da arte, se abrem a zonas de fronteira com as ciências.


O fio condutor desta exposição é, por um lado, a ideia de recolha e de acumulação e, por outro, a consciência da efemeridade e de como ela se manifesta tanto na vida das plantas como na instabilidade das rochas. As propostas de cada um deles tomam, necessariamente, distintas configurações e caminhos.


Bruno Côrte percorreu a serra de Sintra recolhendo plantas de diversas espécies, que foi decalcando e imprimindo em ténues folhas de papel de seda que, sobrepostas, sublinham a ideia de acumulação e de sucessividade. Em complemento desta prática indiciária há o recurso à presentificação das plantas completas que foi colhendo, com cuidados de herborista. Estão suspensas do teto e ostentam o seu lado oculto, ou seja, o tenaz e subterrâneo labor das suas raízes. O uso de plantas suspensas (anteriormente utilizado em Landscape room, no Teatro Municipal Baltazar Dias, em 2002, em Private underground, no Museu de Arte Contemporânea do Funchal, em 2003, ou em Estudos para paisagem, na Galeria dos Prazeres, em 2013) pode ser visto como uma deriva das latadas que, nos quintais insulares, sustentam a vinha, as «pimpineleiras», ou os maracujaleiros, lugares amenos que dão frutos e sombra, submetendo a natureza a uma regularidade arquitetónica.


Em paralelo, apresenta uma série de fotografias de paisagens do Japão captadas através de webcams durante os últimos três anos, onde a sazonalidade fica patente. Registam o final de verão, o que resistiu à estiagem, prenúncios de outono onde predominam os tons acastanhados e mantos de neve silenciando tudo. O binómio distância / proximidade resolve-se assim  no diálogo entre a contemplação de longínquas paragens e a ação centrada em lugares familiares das redondezas.


Martinho Mendes retoma nesta mostra uma questão para a qual apontava já em 2005 (numa colectiva realizada ainda em âmbito académico, Sobre pedras, entre muros, na Universidade da Madeira), em que encenava um paradoxo inerente à ontologia da pedra, que tanto pode ser solidez e abrigo, como representar o risco, a instabilidade e a agressão. O quotidiano numa ilha vulcânica agudiza a experiência do risco associado à queda de pedras da montanha, daí a opção do autor pelo «Registo de uma derrocada contínua» que dá nome ao seu projeto.


Num primeiro núcleo simula uma rocha em situação de risco, confrontando diretamente o visitante com esse desigual corpo a corpo com a montanha. Noutro, organiza fragmentos das rochas vulcânicas da Madeira e do Porto Santo, oferecendo uma outra forma de olhar para algo de que o museu está repleto, quase uma paleta que é, simultaneamente, prova indiciária das suas deambulações. Neste núcleo cabe também uma assemblage (já apresentada em 2011, no projeto Coração Verde, na galeria da Secretaria Regional do Turismo e Transportes, e em 2014, na exposição Alguns endemismos e outras naturezas, no Museu de Arte Contemporânea do Funchal), em que uma pequena figura sobre uma pedra é colocada frente a frente com a simulação de rocha do núcleo anterior. Um terceiro conjunto reúne fotografias atuais tiradas pelo autor, ora captando a variedade de formações rochosas, ora insólitos e sugestivos fragmentos. Os registos do autor ladeiam imagens de arquivo onde é visível a presença e os efeitos da «derrocada contínua», essa prova da fragilidade do mundo.


Por entre flores e pedras é um título que põe logo de início, pelas preposições escolhidas, a tónica na evocação de um espaço percorrido e, consequentemente, de quem o percorreu. E se as pedras são presença manifesta, as flores, ausentes, são promessa implícita de uma festiva efemeridade renovada cada ano.


Isabel Santa Clara

Setembro de 2017