Nuno Crespo, Linha de Partida - Contributos para um possível Atlas da Arte Contemporânea da Madeira - Centro das Artes - Casa das Mudas|2009
Contributos para um possível Atlas da Arte Contemporânea da Madeira
Linha de partida não é um conjunto avulso de obras de artistas. Também não se trata de uma exposição com uma ideia curatorial (um conceito, um motivo, uma forma)em torno da qual se unem artistas, obras e discursos. Linha de partida é um gesto que reúne um conjunto, eclético e diferenciado, de artistas que têm como denominador comum o viverem na ilha da Madeira e o terem recebido o Prémio Henrique e Francisco Franco. A localidade de que parte a narrativa desta exposição é não só o seu ponto de partida, como o seu ponto de chegada. No sentido em que é a experiência da ilha o elemento que todos os trabalhos desenvolvem e ao qual, em certa forma, todos regressam.
Este é o horizonte em que se inserem as diferentes obras e os diferentes caminhos de uma arte construída e originada naquela ilha. Contudo, não está em causa criar uma espécie de panorama de uma arte regional e local. Até porque é longo o debate sobre se a experiência da arte é local, dizendo respeito a uma comunidade humana, que habita um tempo e lugar determinados, ou se, pelo contrário, se trata de uma experiência global em que as condições particulares da sua percepção não interferem na construção e posterior leitura dos objectos artísticos. Um debate que se prolonga na questão em saber de que forma a actividade perceptiva humana é, ou não, condicionada e, logo, se o que se percebe, vê e pensa, possui características sociais, políticas e institucionais.
Está em causa saber de que modo o aparelho humano da percepção se organiza em torno da experiência de uma obra de arte. E essa organização pode conhecer diferentes eixos dependendo do ponto em que se encontra aquele que cria e depois aquele que experimenta as obras. Por isso é que se pode falar de uma arte local e de uma arte global, protagonizando-se aquela por ser um gesto circunscrito a indivíduos com certas características (por exemplo: falar a mesma língua, possuir uma mesma iconografia, formas simbólicas comuns, etc.) e a última aquele tipo de arte que todos podem perceber e reconhecer.
Desta forma para se descrever uma expressão estética, ou seja, aquela expressão na qual se demonstra o prazer ou desprazer, a aprovação ou desaprovação, sentidos relativamente a uma obra singular (aquele poema, aquela pintura, aquela fotografia, etc.) tem de se descrever toda uma cultura, o que significa que a percepção humana tem condições e é exercida num espaço limitado de possibilidades. Está em causa compreender que não se pode perceber/ver/sentir tudo, mas que a experiência da arte conhece limites. Diz Wittgenstein: “As palavras a que chamamos expressões de juízo estético desempenham um papel muito complicado, mas muito definido, naquilo a que chamamos a cultura de um período. Para descrever o seu uso ou para descrever aquilo que queremos dizer quando falamos num gosto culto, temos de descrever uma cultura [...]. Em diferentes idades jogam-se jogos inteiramente diferentes.”
Não se vai aqui fazer o levantamento da topografia da cultura madeirense, nem do modo como se podem entender as suas diferentes práticas culturais (presentes e passadas). Trata-se de chamar a atenção para o facto de a dificuldade da tarefa não estar na necessidade de encontrar o contexto a que correspondem os nossos juízos estéticos (que são constituídos não só pelas palavras que dizemos, mas pelas coisas que fazemos), mas que esses contextos — a cultura — estão em permanente mudança. De cada vez é-se confrontado com um novo gesto, uma nova linguagem, uma nova intensidade, as quais exigem a construção de condições de recepção particulares e específicas. É por isso que muitas vezes à experiência da arte corresponde um estar-se perdido, não se saber o que dizer, o faltarem as palavras para descrever o que se sente, etc.
‘Linha de Partida’ contribui, de algum, modo para este debate ao mostrar que, em rigor, na contemporaneidade não se pode falar de uma arte local. O que se assiste nesta exposição é a uma sucessão de obras em que é o modo como um lugar, com uma geografia própria e delimitada, mesmo sendo presente, não é o seu único referente. A sua localidade não significa um constrangimento, mas sim um elemento utilizado no desenvolvimento de práticas próprias e distintas.
A haver um denominador comum entre todos estes trabalho ele está numa certa ideia de origem que todos constroem e/ou reconstroem. Origem aqui num sentido amplo, isto é, a origem enquanto elemento a partir do qual se parte, mas que se integra e transforma. Nos catorze artistas é possível detectar, enquanto experiência sentimental, a presença de um quotidiano comum a todos. O qual não surge sob a forma de um registo ou de um documento, mas transfigurado nos diferentes elementos que compõem a variedade formal, cromática e temáticas destas obras.
A sua estrutura fragmentária permite pensar nesta exposição como um atlas no qual se inscrevem zonas criativas heterogéneas e onde são mostrados elementos vários, dissemelhantes, disruptivos e, algumas vezes, descoincidentes. A sua diferença não está no gesto, mas na forma, no tempo, na tensão. O caminho que se faz através deste atlas possibilita a visão de uma terra imaginária feita de diferentes lugares, com diferentes dimensões, morfologias e espécies características.
As metáforas da geografia e da topografia são as que mais convêm a Bruno Côrte. O seu trabalho é uma espécie de investigação acerca das condições de possibilidade de uma paisagem. O artista parte de um registo fotográfico das montanhas para a construção de um modelo vivo da natureza que observa. As fotografias, revelando sempre o mesmo enquadramento, mostram três montanhas japonesas nas quais se evidenciam as diferenças de cor, de forma, de textura de profundidade. Alterações estas não avulsas, mas decorrentes da sucessão das estações: as alterações cromáticas, a transformação dos elementos que compõem a paisagem, etc. Trata-se de um modelo vivo porque a unidade que consegue com as suas fotografias cria na imaginação do espectador um ‘quadro-vivo’ das metamorfoses da paisagem. Na outra peça que apresenta nesta exposição (um tabuleiro com terra a formar um conjunto montanhoso onde foram plantadas sementes de relva que crescem durante a exposição) também é um modelo dinâmico das transformações e alterações naturais que o artista ensaia: a terra transformada em peça de museologia continua a exercer a sua acção, a reter as suas forças, a ser origem de forma, de cor, de vida.
Com Carlos Jorge Rodrigues é a matriz musical que ordena as formas e cores que compõem os objectos, esculturas e dispositivos do artista. Se a um primeiro olhar as suas esculturas parecem ser simples exercícios formais, depois revelam-se como momentos de exploração da natureza essencial dos diferentes ingredientes do gesto escultórico: leveza, ilusão, sobreposição, composição, profundidade. A sua pesquisa pode caracterizar-se como sendo uma pesquisa que entende a escultura como mecanismo e acção. Por isso os seus objectos não são estáticos, mas campos de força que exigem ser manipulados, usados, testados. E só nesse uso a escultura pode finalizar-se, cumprir-se e conhecer uma forma satisfatória. Neste sentido, as suas esculturas/mecanismos são uma espécie de peça musical que só depois de tocada e ouvidas existe verdadeiramente.
Os vídeos e instalações multimédia de Desidério Sargo partem de uma experiência de confinamento: estar preso a um modo de ser, a uma cor de pele, a uma atitude. O seu trabalho, constituído por duas instalações vídeo, é um local de confronto do visitante (e activador das peças: as suas obras só funcionam quando alguém as utiliza e as acciona) com a diversidade de camadas que constituem a sua identidade. Trata-se de um trabalho que se pode inscrever numa pesquisa acerca da identidade e da comunidade humana da qual homem é um acontecimento. Que o eu seja um compósito não essencial significa, para o artista, que é num espaço relacional, espaço de coexistência dos outros e do si-mesmo, que a identidade é construída. Mas esse espaço é também momento de expressão, lugar de visibilidade do outro e das suas manifestações simbólicas. Por isso, aquilo que o artista constrói (com tijolos e simulacros de pessoas) é um espelho no qual se cria uma imagem correspondente à descoberta daquilo que cada um, por si mesmo, deposita no seu exterior.
O universo bélico de Duarte Encarnação destaca-se não só pela volumetria dos seus objectos, como pelas diferentes referências pictóricas e históricas que utiliza. O artista realiza dois movimentos distintos: primeiro desloca os objectos dos seus contextos originais e, depois, reconstrói-os. Não se trata de um procedimento de apropriação directa, mas de um gesto de cópia e de imitação: neste caso o artista refaz em madeira a segunda bomba atómica e actua sobre ela pintando no nariz uma pin-up agarrada ao rato Mickey. É sobretudo nesta segunda operação a sua obra se transforma num momento não documental, mas puramente pictórico. Está em causa não uma relação histórica com um facto documentado, mas uma relação estética que é determinada pelos ingredientes sensíveis que compõem a obra. O resultado é não só a inscrição deste trabalho no campo da pintura, como a construção inaugural de uma iconografia.
O percurso que ‘Linha de Partida’ traça conhece nos desenhos de Eduardo de Freitas um dos seus momentos mais poéticos. Este carácter provém não só da força com que o carvão se inscreve na superfície da folha, mas sobretudo pelo silêncio que guia (e que é uma sua condição) o traço na construção das formas que se vê surgir à superfície. Não se sabe bem que criaturas são aquelas: se orgânicas, se vegetais, se seres fantasmáticos alojados no interior dos seus espectadores. O jogo que estes desenhos estabelecem com o visitante é de devolução: o visitante é confrontado com a sua imagem interna, visceral, sem mediação, sem máscaras ou imagens espelhadas. O ambiente sombrio em que surgem intensifica o sentimento de estranheza que tem quem olha para aquelas formas: uma estranheza que reside numa espécie de pressentimento que o que vê corresponde ao interior anímico e visceral de si mesmo.
A galeria de retratos de Graça Berimbau corresponde a um olhar quase etnográfico sobre as mulheres artistas da Madeira. Formalmente, a artista não só constrói um retrato das suas “colegas-artistas”, como o faz a imitar o “estilo” artístico de cada uma delas: pinta-as como acredita que elas se pintariam a si mesmas. A ligação a estes retratos é sobretudo afectiva e em cada um deles a fisionomia é utilizada como ferramenta de aproximação à identidade de cada uma das artistas. É evidente que está em causa não só um trabalho relativo à memória, mas igualmente um olhar sobre o modo como as características dos modos de fazer artísticos são constitutivos da identidade de cada um.
Também são fisionomias o elemento central dos trabalhos de José Manuel Gomes. As obras que apresenta aliam o universo do retrato, ao universo das pulsões eróticas latentes no corpo escultórico. E Eros surge aqui não enquanto desejo sexual, mas como lugar onde residem as forças mais potentes e brutais do ser humano. E é a esse ponto obscuro onde se originam as forças da alma, e no qual confluem o desejo erótico e o desejo de conhecimento que dão origem à arte, que se dirigem os gestos do artista. A sua escultura surge como uma pele autonomizada do corpo, da forma. Uma pele que não é um limite, mas a possibilidade de qualquer
corpo.
Com Luísa Spínola entramos num universo de referências privadas, de acasos na história da artista e na sua relação com o que faz, o que vê e o que vive. Todas as imagens que cria parecem reenviar para si mesma enquanto centro convergente de formas, cores, e, sobretudo, enquanto instância que origina uma enorme diversidade de discursos sobre a relação da arte com o espaço, a condição feminina e os fantasmas que, quer se goste ou não, fazem sempre arte da fantasia de cada um. As três obras que apresenta nesta exposição desenvolvem-se em direcções muito distintas (escultura, instalação, pintura), mas em comum possuem uma relação muito singular com a presença do elemento feminino nos discursos correntes sobre a arte. Não é um típico trabalho feminista político e contestatário, mas toma em mãos o ingrediente feminino que a acção de dar forma inevitavelmente comporta.
O trabalho de Nuno Henrique é um herdeiro da Madeira. O seu olhar formado nos herbários (impossível não recordar a proximidade com o olhar e atenção de Lourdes Castro) elabora, como lhe chama o artista, uma ficção arqueológica. Esta acção corresponde a uma dupla ambição: por um lado uma recolha minuciosa de quarenta espécies vegetais existentes na ilha da Madeira e a partir desse registo redige frases, como se fossem frases lapidares, que em conjunto com a forma da planta são, de acordo com um procedimento botânico vulgar, calcados em folhas de papel. O resultado é, por um lado, uma sala de objectos que são meio desenho/meio escultura e, por outro lado, uma espécie de viagem pela flora madeirense. E trata-se de uma arqueologia porque este trabalho protagoniza uma acção de descoberta, revelação e desocultação.
A performance é o elemento central dos trabalho de Paulo Sérgio Beju. A memória de uma acção do corpo é o que melhor caracteriza a presença deste artista nesta exposição. Os seus gestos mais que artísticos são gestos alegóricos que invocam uma relação mágica e simbólica com os elementos com que se constroem as imagens. A sua presença estende-se pelo espaço expositivo e a cada momento o que a caracteriza são os vestígios das acções do artista. O gosto pelo paradoxo é outra das notas dominantes: linguagem e gesto são as suas ferramentas de trabalho. E com elas introduz na exposição um universo de símbolos que apelam à descoberta e à actividade de transformar a matéria morta artística em matéria prenhe de significados.
Duas fotografias de grandes dimensões poderiam descrever a presença de Pedro Clode. Mas as suas imagens não são produtos acabados, no sentido em que a sua completude não se encontra nas imagens capturadas pela máquina e depois impressas no papel, mas no seu exterior. É na relação que se estabelece entre o universo material fotografado e o universo sugerido pelo texto impresso na superfície da fotografia que o elemento decisivo deste trabalho se deixa ver. E esse encontro dá-se na zona vazia que o puro desejo sexual deixa atrás de si: uma força que nunca se apazigua, um desejo vazio de forma e cuja forma, tal como a garagem que o artista fotografa, só indirectamente se deixa determinar.
Com Ricardo Barbeito regressa-se ao momento mais informe da criação. O “Criadeiro” é uma instalação que não só recupera a tradição da criação de aves, como transporta para o interior da exposição a relação formal que a forma esférica tem com a origem do universo. Desde as formas de vida mais simples, às mais organizadas (incluindo-se as ideias supra-sensíveis e transcendentais) que o ovo simboliza origem e, sobretudo, potência. E toda a instalação de Barbeito é sobre a potência do ser: não conhecer restrições, nem limitações, poder ser tudo. Um universo metafórico que assenta numa relação rigorosa com o espaço e a volumetria criada pelos objectos (todos originários de aviários) que o artista arruma no espaço expositivo. Por isso, a sua pesquisa sobre a origem transforma- se em arte do espaço.
As pinturas de paisagem são um tema comum da história da arte, mas Rute Pereira não só transforma a bidimensionalidade da imagem pintada em imagem tridimesional, prolonga os planos em que se executam os gestos da pintura. Assim, ao utilizar dois planos distintos a artista opera um síntese entre a escultura e a pintura e as formas parecem descolar-se da superfície que pareciam ser o seu único local de existência. Fundamentalmente, trata-se de trabalhar sobre um ponto fértil de contacto e contaminação entre a linguagem das formas e a linguagem das imagens. E é a conversão de uma na outra aquilo que faz a singularidade deste trabalho.
No final deste atlas das tensões e lugares criativos da recente arte madeirense, surge “A dança dos corcundas” de Susana Figueira. Esta dança esculpida não só recupera formas e figuras tradicionais da arte madeirense, como estabelece com elas novas relação e associações. Uma integração que possibilita a criação de novos sentidos e, sobretudo, a aparição de novas imagens para descrever as dinâmicas de relações sociais existentes. Não se trata de exclusivamente de uma crítica social, mas de uma caricatura alegórica daquelas figuras que existem em todos os grupo humanos. A matriz deste conjunto escultórico é o típico instrumento musical madeirense (o brinquinho) no qual se juntam personagens que se podem imaginar ser fragmentos de um quotidiano em permanente mutação e transformação. Desta junção entre o tradicional e a caricatura nasce um momento de compreensão daquilo que constrói uma sociedade, uma cultura, um lugar.