Isabel Santa Clara, Colecções, revista Episteme|2005

Episteme, Porto Alegre, n. 20, suplemento especial, p. 167-171, jan./jun. 2005


COLECÇÕES


A pintura é apenas uma outra maneira de manter um diário.

Picasso


É um tema fascinante, gostava de poder deixar-me tentar. Veremos.1 Para já envio um texto do Italo Calvino que dei há tempos aos alunos acerca de colecções. Acho-o espantoso, até porque vi a exposição de que ele fala e fiquei com ela na cabeça estes anos todos. Serviu-me de pretexto para falar da necessidade dar um fio condutor à multiplicidade de vivências fragmentárias que acumulamos. Escolher uma temática, recolher, organizar, não é isso que faz um artista? Guardadas as devidas distâncias, olha como eu, e para onde eu olho.


A COLECÇÃO DE AREIA DE ITALO CALVINO2 (EXCERTOS)


Há uma pessoa que faz colecção de areia. Viaja pelo mundo e quando chega a uma praia, à beira mar ou nas margens de um rio ou de um lago, num deserto ou numa charneca, recolhe um punhado de areia e leva consigo. No regresso esperam-na centenas de frascos de vidro alinhados em longas prateleiras, nos quais a areia fina de Balaton, a branca do golfo do Sião, a vermelha que o curso do Gâmbia deposita no Senegal, expõem a sua gama estreita de cores esbatidas, revelam uma uniformidade de superfície lunar, ainda que através de diferenças de grão e consistência: do areão preto e branco do mar Cáspio que parece ainda molhado de água salgada, aos pequenos calhaus de Maratea, também pretos e brancos, à fina farinha branca salpicada de conchas arroxeadas de Turtle Bay, perto de Malindy no Quénia.


* Doutoranda em História de Arte. Docente da Secção de Arte e Design da Universidade da Madeira. E- mail: isabel-sta-clara@mail.pt

1 Como se verá, acabou por mandar mais um texto, felizmente. 2 CALVINO, Italo. Collection de Sable. (Trad. de Isabel Santa Clara). Paris: Seuil, 1990, p.

11-17.


Numa exposição de colecções bizarras realizada recentemente em Paris  chocalhos de vaca, jogos de lotaria, cápsulas de garrafa, apitos em barro, bilhetes de comboio, piões, embalagens para rolos de papel higiénico, insígnias da colaboração do tempo da Ocupação, rãs embalsamadas  a vitrine da colecção de areia era a menos vistosa, mas também a mais misteriosa, a que parecia ter mais coisas a dizer, ainda que através do silêncio opaco aprisionado no vidro das suas ampolas.


Temos a impressão que esta apresentação de uma amostra da Waste Land universal nos vai revelar algo de importante: uma descrição do mundo? o diário secreto de um coleccionador? uma revelação sobre mim, que estou a tentar perscrutar nestas clepsidras imóveis a hora a que cheguei? Certamente o conjunto de tudo isso. Do mundo, a recolha de areias escolhidas regista o resíduo de longas erosões que é, ao mesmo tempo, a última substância e a negação da sua aparência luxuriante e multiforme: todos os cenários da vida do coleccionador parecem ali mais vivos que numa série de diapositivos coloridos (uma vida  dir-se-ia  de eterno turismo, tal como aparece aliás nos diapositivos, e tal como a poderiam reconstruir os nossos descendentes, se tivessem apenas isso para documentar o nosso tempo  toda uma indolência em praias exóticas alternando com as explorações mais inacessíveis, numa inquietude geográfica que deixa transparecer uma incerteza, uma ansiedade), evocados, ao mesmo tempo apagados, pelo gesto doravante compulsivo de se curvar para juntar alguns grãos de areia e encher um saco (ou um recipiente de plástico? ou uma garrafa de Coca-Cola?) e depois voltar as costas e partir.

Como em qualquer outra colecção, esta é também um diário: diário de viagens, sem dúvida, mas também diário de sentimentos, de estados de alma, de humores; mesmo que não possamos ter a certeza de que exista verdadeiramente uma correspondência entre a areia fria cor de terra de Leninegrado, ou a areia fina cor de areia de Copacabana, e os sentimentos que evocam ao vê-las assim metidas em frascos e etiquetadas. Ou talvez um simples diário deste obscuro desejo louco que leva tanto a reunir uma colecção como a manter um diário, ou seja, a necessidade de transformar o curso da nossa própria existência numa série de objectos salvos da dispersão, ou numa série de linhas escritas, cristalizadas fora do fluxo contínuo dos pensamentos.

O fascínio que uma colecção exerce reside nesse pouco que ela revela e nesse pouco que ela esconde do impulso secreto que levou a criá-la. Entre as colecções bizarras da exposição, uma das mais impressionantes era sem dúvida a das máscaras de gás: uma vitrine em que as faces verdes ou acinzentadas em tela ou em borracha, de olhos cegos, redondos e salientes, de nariz  focinho em forma de caixa ou de tubo, olhavam para nós. Que intenção teria guiado o coleccionador? Um sentimento  creio  irónico e ao mesmo tempo apavorado face a uma humanidade que estava pronta para se conformar com esses traços entre o animal e o mecânico; e talvez também uma confiança nos recursos do antropomorfismo que inventa novas formas para a imagem e a semelhança do rosto humano com o fim de adaptar-se a respirar fosgénio ou iperite, não sem uma pontinha de jovialidade caricatural. E também, seguramente uma vingança contra a guerra, para fixar nas máscaras o aspecto mais obsoleto e que aparece portanto agora mais ridículo e aterrador; mas também o sentimento que nesta crueza espantada e idiota reconhecemos ainda a nossa verdadeira imagem.


Mas onde a obsessão do coleccionador se volta sobre si própria, revelando um fundo de egotismo, é numa vitrine cheia de capas em cartão sem ornamentos e atadas com uma fita, e sobre cada uma delas a mão de uma mulher escreveu títulos como: Os homens de quem gosto; Os homens de quem não gosto; As mulheres que admiro; As mulheres que não admiro; Os meus ciúmes; As minhas despesas quotidianas; A moda de que gosto; Os meus desenhos de criança; Os meus castelos, e mesmo: Os papéis que embrulhavam as laranjas que comi.

O que estes dossiers contêm não é um mistério, uma vez que quem expõe não é uma expositora ocasional, mas uma artista profissional («Anette Messager; coleccionadora»: é como ela assina), que fez várias exposições individuais em Paris e Milão a partir das suas séries de recortes de jornais, cadernos de notas e esboços. Mas o que por agora nos interessa, é precisamente essa exposição de capas fechadas e etiquetadas, assim como o processo mental que elas implicam. A própria autora definiu-o claramente: «Tento possuir e apropriar-me da vida e dos acontecimentos que chegam ao meu conhecimento. Durante todo o dia folheio, colecciono, ponho em ordem, classifico, separo, e reduzo tudo isso sob a forma de albuns de colecção. Estas colecções tornam-se então a ilustração da minha vida.» Os seus dias, minuto após minuto, pensamento atrás de pensamento, reduzidos a colecção: a vida pulverizada numa porção de grãos: a areia, de novo.


Volto atrás, à vitrine da colecção de areia. O verdadeiro diário secreto a decifrar está ali, entre as amostras de praias e desertos guardadas sob o vidro. Neste caso a coleccionadora é também uma mulher (leio isso no catálogo da exposição). Mas por agora não me interessa atribuir-lhe um rosto, uma silhueta; vejo-a como uma pessoa abstracta, um eu que poderia ser eu próprio, um mecanismo mental que tento imaginar a trabalhar.

Ei-la que chega de uma viagem, arruma os novos frascos alinhando-os sobre os outros, e de súbito apercebe-se que, sem o índigo do mar, o cintilar destas praias de pó de conchas se perdeu; que nada ficou do calor húmido do oued na areia parada; que longe do México, a areia misturada à lava do vulcão Paricutín não passa de uma poeira negra semelhante à que cai quando se limpa a chaminé. Ela tenta reanimar na sua memória as sensações desta praias, o cheiro desta floresta, este calor ardente, mas é como agitar um pouco a areia no fundo do pequeno frasco etiquetado.


Decifrando assim o diário da melancólica (ou feliz?) coleccionadora de areia, vim dar ao ponto de interrogar-me acerca do que está escrito nessa areia de palavras escritas que alinhei ao longo da minha vida, essa areia que me aparece agora tão afastada das praias e dos desertos do viver. Talvez seja fixando a areia enquanto areia, as palavras enquanto palavras, que poderemos aproximar-nos da compreensão de como e em que medida o mundo desgastado pela erosão e desfeito em pó pode ainda encontrar aí o seu fundamento e o seu modelo».


SEMENTES E OUTRAS NATUREZAS3


Andar pelo mundo com os olhos abertos tem as suas consequências, e esta exposição é uma delas, enquanto resultante de caminhadas por diversos lugares, e memória de encontros, acasos e descobertas.

Tal como nos antigos gabinetes de curiosidades, nascidos do fascínio pela estranheza e variedade das formas naturais, nas sementes recolhidas por Bruno Côrte também se sente a atracção pelo engenho dessas formas, pela imensidade de soluções que encontra a vida para ser guardada.

Numa mistura de naturalia e artificialia, segue-se ao recolher das sementes o acto de incrustar a sua fragilidade na não menos precária protecção de um invólucro feito blocos de parafina, isolando-as e conferindo-lhes a unidade e a regularidade de uma catalogação. Ao incorporar o pigmento na parafina, Bruno Corte interfere com a translucidez do material trazendo-o mais para o campo da intervenção pictórica. Não de uma pintura no sentido tradicional do termo, mas já em «campo expandido», como uma presença tutelar que preside ao gesto de colorir e de criar ordens e ritmos.

A captação tautológica das peças pela fotografia regista e reforça a tentativa sempre vã, e por isso mesmo sempre incessantemente retomada, de reter a efemeridade das coisas.


3 Este texto de Isabel Santa Clara abre o catálogo de uma exposição de Bruno Côrte.


Daí me ter lembrado de uma exposição organizada em 1974 por François Mathey, no Musée des Arts Décoratifs em Paris, que por sorte do acaso vi, que reunia as mais díspares escolhas / recolhas de coleccionadores anónimos, e mostrava também Anette Messager, cujo trabalho começava a ser conhecido, na qualidade de coleccionadora de colecções. Sobre este evento escreveu Italo Calvino,4 fascinado sobretudo pela diversidade patente numa colecção de areias de todo o mundo, que qualquer colecção é também um diário, de viagens, de sentimentos de estados de alma, de humores; e que o impulso secreto que leva a coleccionar e reunir uma colecção, ou a manter um diário, parte da necessidade de transformar o curso da nossa própria existência numa série de objectos salvos da dispersão.

Esse mesmo impulso está presente neste confronto de Bruno Côrte com as sementes, trazendo-as, através de um misto de espontânea admiração pelas formas, rigorosa inventariação e pensada exposição, para outro reino, ou seja, para outras naturezas.


4 Italo CALVINO, Collection de Sable, Paris, Éditions du Seuil, 1990, pp.11-17.