Ana Luisa Janeira, Húmus, Galeria Serpente|2009
Colect(tor)cionar
Como em outras atitudes e manifestações, o discurso moderno construiu uma relação complexa entre sujeito e objecto, quando pensou e produziu entidades e qualidades representativas da sua configuração epistemológica.
Por esse viés e sob pressão do alargamento gerado pelo contacto com os Novos Mundos, as inovações registadas a partir do século XVI interferiram nas coisas e nas palavras, desarticulando a memória escolástica, e desembocaram no levantamento e aproveitamento das riquezas dos reinos e suas colónias
A Natureza principiava a ser olhada e vista por modelos perceptivos e interpretativos ao arrepio de uma cultura dependente do ouvir e do ler. Assim sendo, a realidade europeia começava a incorporar elementos diferenciadores de emergências que foram servidas não só por sujeitos e objectos curiosos, como também por comportamentos resultantes da curiosidade intelectual. Ou ainda por produtos passíveis de serem tidos por curiosidades.
Do que nasceu um contexto, ideológico e semântico, onde esta matriz revelou as suas potencialidades gnosiológicas, estéticas, sociais e pedagógicas, a ponto da elite procurar criar recantos especiais para as acolher nos paços, e de académicos perceberem, desde logo, as potencialidades inerentes para o conhecimento.
O universo mental passou a ser movido pela síncrese eidéctica e pela idiossincrasia pré - disciplinar que estrearam a sagacidade renascentista, a subir a “árvore do conhecimento” sob a égide de um espírito irrequieto e interrogante, e penetraram na centralidade antropológica de tipo humanista, através de novos questionamentos.
Na verdade, os tempos iam favorecendo seres enquadrados por uma consistência integradora entre saberes, porquanto a utopia do homo universalis nunca esteve tão presente, do antes ao depois. Como consequência, a abordagem cognitiva manifestava a excelência de existir e de se manter, através de uma multiplicidade com entradas sensoriais e elaborações lógicas, orientadas para efeitos marcados pelo cruzamento entre as marcas do representado e a representação.
A representação inicial que inovou face ao pensamento medieval e a representação posterior que engravidou a modernidade resultaram da incorporação de materiais nunca vistos, antes das aventuras transoceânicas, como ainda de fenómenos não pensados, antes dos caminhos percorridos pelas investidas intra - continentais. Todos articulados às ciências modernas, da Filosofia Natural à Farmacologia, da Anatomia à Antropologia.
Porque as semelhanças e diferenças ainda não primavam, os exemplares recém chegados juntaram-se às naturalia, artificialia e mirabilia previamente existentes, criando conjuntos, organizados mais por surtos de bom gosto do que por qualquer ordenação rígida, dependendo da racionalização intrépida posterior. Aliás, continuando a primar uma ideia de criação moldada pela Criação original, a Natura como a Cultura, a Ciência como a Arte revestiam-se de alguma intimidade, podendo, por isso, ter uma visibilidade comum, através de aparatos expositivos numa mesma parede, numa mesma mesa ou numa mesma vitrina.
Progressivamente, porém, os exemplares e as peças foram deslocadas das suas posições relativas, quando se tornaram alvos de enfoques distintos, motivo porque tiveram de ser guardados e mostrados em contextos e locais afastados, acabando por fazer emergir instituições desligadas.
Num primeiro tempo, e no que respeita o passado, abre portas para a compreensão genética do Museu de
História Natural, do Museu de Arte, como dos demais. Perspectiva, igualmente, o ganho e a perda, quando as curiosidades ficaram atenuadas e a Natureza apareceu dominada por fenómenos e factos científicos.
Num segundo tempo, perspectiva as inerências próprias de um universo epistemológico onde o conhecimento integrava múltiplas facetas que se perfilavam simultaneamente antes da especialização.
Num terceiro tempo, obriga a reflectir criticamente sobre o papel de uma globalização massificada, em opções ameaçadoras para um tipo de cultura e de inteligibilidade mediadas positivamente pela curiosidade.
Num quarto tempo, esta tradição servirá também para repensar tendências da museologia e da museografia actuais, com participações, interactividades e intervenções, relegando a passividade e ajudando, muito pelo contrário, a repor o lugar exacto para situar as qualidades do curioso, ou seja, permitir que se interrogue até que ponto o mundo científico contribuiu para depreciar, com justeza ou não, o modo - de - ser - curioso.
Mais ainda: chegados ao paradigma dominante, como abrir brechas em favor de um paradigma permeável a um tipo de mundi - vidência, onde a curiosidade seja ensinada e aprendida?
Por isso, a curiosidade de Bruno Côrte liga-se a uma arqueo - genealogia. História que inverte e reverte.
Isso, na medida mesma em que assume ser andarilho entre formas e conteúdos naturais. Ou ainda como baú para espécimes guardadas nos recantos escondidos de amores acumulados. E muito, finalmente, quando os transforma em arte - factos, na magia de uma qualquer demanda interior, se a metamorfose opera e borboleteia pela visibilidade chamada exposição. Como consequência, o Segundo Reino da Natureza acaba revestido por uma aura de fidelidade a si mesmo e por pudor de linhas a negar o arti - ficialismo, onde outros belos se comprazem frequentemente.
Levando o sentir mais para o campo da reflexão, é indiscutível que o conjunto deste percurso levanta um questionamento, que pode traduzir-se nesta pergunta:
se etimologicamente collectione significa legere cum
e se, chegados onde chegámos, não há mais Natura
em que medida esta atitude estética sugere, antes sim um ler com nos limites da NaturaCultura?
Bibliografia
- JANEIRA, Ana Luísa - Jardins do saber e do prazer. Jardins botânicos. Lisboa, Edições Salamandra, 1991, 146.
- JANEIRA, Ana Luísa - Fazer-Ver para Fazer-Saber. Os Museus das Ciências. Lisboa, Edições Salamandra, 1995.
- JANEIRA, Ana Luísa; MOURÂO, José Augusto; GUEDES, Maria Estela - A Paixão do Coleccionador: Espaços de Colecção. Lisboa, Fundação das Casas de Fronteira e Alorna, 1997.
- JANEIRA, Ana Luísa (org.) - “Gabinete de Curiosidades”. Lisboa, Centro Interdisciplinar de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade de Lisboa (CICTSUL), 1999. Inclui estes textos adaptados de Ana Luísa Janeira: Ouvir e ler, olhar e ver, observar e experimentar, 31-38; Explorar, expor e crer, 41-49; Do Paço da Ajuda à Escola Politécnica de Lisboa, 55-58; O jardim botânico das reais quintas do Paço de Nossa Senhora da Ajuda, 61-65; O Hospicio dos Apostolos da Cotuvia (1603-1759): Bairro do Andaluz, cidade de Lisboa, 79-82; O quadrilátero jesuítico: uma arquitectónica cultural e científica entre os guaranis, 91-95; Viagem filosófica pelo espaço-tempo dos jardins botânicos, 97-101; Jardins entre dois mundos, 103-106; O exótico nas colecções dos jardins botânicos,
109-118; Naturacultura: jardins e utopias, 121-127.
- JANEIRA, Ana Luísa. - Gabinetes, Boticas e Bibliotecas, 2003.
http://www.triplov.com/ana_luisa/cabinet.html
- JANEIRA, Ana Luísa - Colecções, Museus, Públicos e Literacia. 2003 http://www.triplov.com/ana_luisa/colecções.html
- JANEIRA, Ana Luísa - A configuração epistemológica do coleccionismo moderno (sécs. XV-XVIII). "Episteme", Porto Alegre, (20), Jan.-Jun. 2005, 25-36.
- JANEIRA, Ana Luísa (edit. conv.) - “O mundo nas colecções dos nossos encantos”. "Episteme", Porto Alegre, (21) Suplemento Especial, Jan.-Jun. 2005, 334 pp.+ CD-ROM. Inclui estes textos de ou com a colaboração de Ana Luísa Janeira: A configuração epistémica de gabinetes, boticas e bibliotecas; Mapeando a natureza brasílica nas rotas dos mares; Poder, saber e cais de intercâmbio à volta de L’Intérieur d’un negociant bordelais au XVIII.e siècle; Endémicas e exóticas nos jardins do Paço de Nossa Senhora da Ajuda e da Universidade de Coimbra; Andarilhos, comerciantes, espiões, naturalistas e outros cientistas em saques, expedições e exposições; A Amazónia&companhia importada para o público norte-americano; Entre ciências e etnociências; A memória na comunidade científica e museológica moderna; Viajar e sonhar pela colecção; Restos de colecção, promoções no tempo, saldos pela história.
http://www. ilea.ufrgs.br/episteme/portal/index
- JANEIRA, Ana Luísa - Primórdios do coleccionismo moderno em espaços de produção do saber e do gosto, "Memorandum: memória e história em psicologia", 2006. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a10/janeira01.htm
- JANEIRA, Ana Luísa et al. - Curiosidades de Frei Manuel do Cenáculo, Bispo de Beja e Arcebispo de Évora (1724-1814), 2008. Inclui estes textos de ou com a colaboração de Ana Luísa Janeira: Museus, públicos e literacia; A Naturalia do Museu de Évora e a história das ciências em Portugal; Um gabinete de curiosidades entre o real e o imaginário; Autoria, propriedade e «aura».
http : // www. triplov. com / ana_luisa / Manuel -do- Cenáculo / Manuel - do - Cenáculo . doc
Professora Associada com Agregação em Filosofia das Ciências Secção Autónoma de História e Filosofia das Ciências
Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa
Rua Ernesto de Vasconcelos
1749-016 Lisboa
Co-fundadora, primeira coordenadora e actualmente investigadora
Centro Interdisciplinar de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade de Lisboa (CICTSUL) Instituto de Investigação Científica Bento da Rocha Cabral
Calçada Bento da Rocha Cabral, 14
1250-047 Lisboa
janeira@fc.ul.pt